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06.10.2009

Paulo Ayres Barreto

Controvérsias sobre o critério espacial do ISS: o estabelecimento prestador na economia digital

Sobre Mim

Introdução

 

É grande a satisfação de participar desta obra em homenagem ao Professor e Ministro Luiz Alberto Gurgel de Faria, cuja atuação acadêmica se deixa frequentemente demonstrar nos votos analíticos, profundos e bem fundamentados exarados no exercício de sua atividade judicante perante o Superior Tribunal de Justiça. Nesse contexto, o exame das controvérsias acerca do critério espacial do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), a que se dedica este artigo, pautar-se-á no seguinte trecho da obra acadêmica do Homenageado, que se debruçou sobre o federalismo brasileiro:

 

“Se houver um fortalecimento do poder central, haverá um federalismo centrípeto. Ao revés, caso a concepção do constituinte for pela maior preservação do poder estadual, haverá o federalismo centrífugo. Existindo um equilíbrio de forças contraditórias da unidade e da diversidade, do localismo e do centralismo, pode-se falar em federalismo cooperativo ou de equilíbrio, conduzindo a um razoável campo para o desenvolvimento das relações de cooperação, sem prejuízo do primado da União Federal nas questões de sua competência de Estado soberano.”[1]

 

Em matéria de ISS (assim como ocorre com o ICMS, examinado na obra do Homenageado), a Constituição Federal de 1988 optou, claramente, por um regime de federalismo cooperativo, de equilíbrio, conferindo ao legislador nacional a competência para estabelecer normas gerais sobre o tributo, de modo a promover a sua uniformização, ao mesmo tempo em que conferiu competência a cada um dos Municípios para a sua instituição, privilegiando-lhes a autonomia.

Desse modo, o presente artigo visa a analisar a fixação do critério espacial do ISS, atrelada á figura do estabelecimento prestador, para examinar, especificamente, casos em que há disputas interfederativas entre dois ou mais Munícipios, relativamente ao mesmo ISS. Nestes casos, a par de uma disputa entre Fisco e Contribuinte, existe lide entre dois diferentes Fiscos Municipais, haja vista que, ao se controverter acerca do local da ocorrência do fato gerador, discute-se a própria sujeição ativa, o ente municipal competente para a cobrança do tributo. Esses conflitos têm se mostrado cada vez mais recorrentes, considerando-se, sobretudo, a emergência de modelos de negócio que permitem que o prestador e o tomador dos serviços estejam localizados em municipalidades diversas, no contexto da chamada economia digital.

Trata-se de hipóteses em que a função da Lei Complementar Nacional de dispor sobre conflitos de competência se faz essencial, cabendo à doutrina bem dissecar os elementos necessários e suficientes para a configuração do estabelecimento prestador do ISS, bem como de sua (dis)simulação.

Para tanto, este artigo iniciará com o exame da radicação constitucional do critério espacial do ISS, examinando-se, também, o conceito de estabelecimento prestador previsto na Lei Complementar 116/03, especialmente considerando os serviços prestados de forma remota, a tomadores que podem estar localizados em Municípios diferentes do estabelecimento prestador. Em seguida, intentar-se-á fornecer critérios baseados não apenas na LC 116/03, mas também no Código Tributário Nacional, para a solução de controvérsias envolvendo acusações de simulação do estabelecimento prestador.

 

1. A hipótese de incidência do ISS, o conceito de estabelecimento prestador e os serviços prestados de forma remota

 

Como é sabido, a Constituição Federal de 1988 atribui aos Municípios a competência para a instituição de imposto sobre “serviços de qualquer natureza” não compreendidos na competência dos Estados e “definidos em lei complementar” (art. 156, III). O conceito constitucional de serviço tributável, neste passo, encampa o esforço humano de conteúdo econômico desenvolvido em benefício outrem, com a ressalva das exceções constitucionalmente postas, dentre as quais se destacam as imunidades.[2]

Ao assim circunscrever a competência para a instituição do ISS, a Constituição Federal pressupõe uma vinculação do conceito de serviço (hipótese de incidência possível do tributo), ao seus critérios espacial e pessoal.[3] É dizer, o critério espacial do ISS deve corresponder ao local onde prestado o serviço tributável, sendo competente para a sua instituição e cobrança o Município onde praticado tal fato gerador. Como ensina Aires Barreto, o “imposto é devido no lugar (Município) em que a atividade (facere) for concretizada, ultimada, concluída”.[4]

Nesse sentido, ao exercer o papel de evitar conflitos de competência (art. 146, I), o art. 3º da Lei Complementar 116/03 estabeleceu, como regra geral, que o fato gerador do ISS se considera ocorrido no local do estabelecimento prestador, salvo as exceções constantes dos seus incisos. Em face desse pressuposto inafastável, era taxativo o Autor em afirmar que tal local “só prevalecerá se o estabelecimento escolhido pela empresa (dentre tantos que eventualmente possua) realizar, desenvolver e ultimar os atos materiais, providências e medidas necessárias à prestação dos serviços”.[5]

Nesse sentido, o art. 4º da LC 116/03 define o estabelecimento prestador, para fins de determinação do local da incidência do ISS, como “o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional”. A regra geral, portanto, é que o ISS seja devido ao Município onde se localize a unidade econômica e profissional onde o contribuinte exerce a atividade de prestação de serviços. Nessa hipótese, são, em regra, irrelevantes, o local onde são celebrados os contratos, o lugar onde há emissão de documentos fiscais e local do tomador do serviço.[6] Importa, exclusivamente, o local onde “tenha havido o exercício das atividades causadoras da obrigação de pagar imposto”.[7]

Assim, as exceções à regra geral de que o ISS será devido no local do estabelecimento prestador visam, exatamente, a reconhecer casos em que o facere se dá em lugar específico. É o caso, por exemplo, dos serviços de construção civil. Trata-se de serviços que, via de regra, não são efetivamente performados no estabelecimento onde localizado o prestador, mas sim no local da execução da obra, para cujo Município correspondente deverá ser recolhido o ISS (art. 3º, III, da LC 116/03). Mais recentemente, a LC 157/16 inseriu novas atividades dentre as exceções à regra geral conforme a qual o ISS é devido no local do estabelecimento prestador, mormente acerca de serviços relacionados ao mercado financeiro e de cartões de crédito. Trata-se de modificações que vêm sendo objeto de relevantes controvérsias, estando subjudice nos autos da ADI 5.835, perante o Supremo Tribunal Federal, cuja análise ultrapassa os objetivos deste artigo.

De todo modo, a regra geral segue sendo a fixação do critério espacial do ISS (e, consequentemente, do seu sujeito ativo) conforme a localização do estabelecimento prestador, definido no art. 4º da LC 116/03 como “o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”.

Contudo, a aplicação desta regra não raro gera questionamentos quando se examina a tributação, pelo ISS, de serviços prestados a destinatários (tomadores) localizados em diferentes Municípios. Como já dissemos, trata-se de situação cada vez mais frequente, considerando-se, especialmente, os novos modelos de negócios viabilizados pela chamada economia digital.

Nesse contexto, verifica-se, relativamente aos serviços prestados de forma remota e que não se enquadrem nas exceções dos incisos do art. 3º da LC 116/03, pelo menos três linhas de interpretação do conceito de estabelecimento prestador (e dos critérios de existência de unidade econômica ou profissional), quais sejam: (i) concentração das prestações materiais relativas às atividades-fim relacionadas ao serviço; (ii) local da contratação do serviço; e (iii) local onde o cliente utiliza a plataforma digital (estabelecimento digital).

Segundo nos parece, a única interpretação efetivamente condizente com o direito positivo consiste na interpretação que demanda a decomposição analítica da atividade de prestação de serviços, para determinar-se as atividades que compõem o seu núcleo. Essas atividades correspondem ao facere tributado pelo ISS na forma do art. 156, III, da CF/88, de modo que, onde estiverem localizadas, estará a unidade econômica ou profissional a que se refere o art. 4º da LC 116/03.

Muito embora as leis municipais frequentemente elenquem elementos que devem ser considerados para fins de determinar-se a configuração de estabelecimento prestador (como a existência de local fixo, de empregados, etc.), trata-se de meros indicativos, sendo certo que o que realmente importa é ser o local destinado à efetivação do facere que corresponde à prestação de serviço, materialidade constitucionalmente eleita para a incidência do ISS (CF/88, art. 156, III), por denotar capacidade contributiva do prestador (CF/88, art. 145, § 1º). Nesse sentido, esclarece Aires Fernandino Barreto que “estabelecimento prestador é qualquer local em que, concretamente, se der a prestação de serviços. (...) Em outras palavras, configura estabelecimento prestador o lugar no qual, de modo concreto, se exercitem as funções de prestar serviços, independentemente do seu tamanho, do seu grau de autonomia, ou qualificação específica”. [8]

Trata-se da posição (a nosso sentir corretamente) adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.060.210/SC,[9] julgado sob a sistemática de recursos repetitivos. Nesse precedente, ao interpretar o conceito de estabelecimento prestador em relação à atividade de arrendamento mercantil, o Tribunal entendeu que a norma demanda uma decomposição analítica das atividades envolvidas na prestação do serviço, de modo que se considerará configurado o estabelecimento no local onde se concentrar a atividade-fim (denominado de “núcleo do serviço prestado”). Especificamente no que respeita ao leasing, o STJ entendeu que o núcleo da prestação do serviço consiste na atividade de decisão sobre a concessão dos financiamentos.[10]

A eficácia vinculante do julgamento do STJ neste recurso repetitivo, em conformidade com o art. 927, III, do CPC/15[11], restringe-se às atividades de arrendamento mercantil ou leasing (no período anterior à vigência da LC 157/16). Não obstante, as razões de decidir (ratio decidendi) do acórdão podem e devem ser aplicadas a outras atividades, uma vez que os tribunais têm o dever de manter a sua jurisprudência “estável, íntegra e coerente” (art. 926, caput, do CPC/15). Nesse sentido, a aplicabilidade das razões de decidir do acórdão repetitivo relativo às atividades de arrendamento mercantil, em relação a atividades diversas, vem sendo reconhecida pelo STJ, conforme demonstra o precedente abaixo, de lavra do Homenageado, exarado em processo atinente a serviços na área de informática:

 

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ART. 535 DO CPC/1973. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ISS. COMPETÊNCIA. MUNICÍPIO SEDE DO ESTABELECIMENTO PRESTADOR. ENTENDIMENTO FIRMADO NO JULGAMENTO DE RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. (...)

3. A Primeira Seção, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.060.210/SC, submetido ao rito dos recursos repetitivos, firmou o entendimento de que, regra geral, o município competente para a cobrança do ISS é aquele onde sediado o estabelecimento do prestador (arts. 12, "a", do DL n. 406/1968 e 3º, caput, da LC n. 116/2003), ressalvando que, "após a vigência da LC 116/2003 é que se pode afirmar que, existindo unidade econômica ou profissional do estabelecimento prestador no Município onde o serviço é prestado, ou seja, onde ocorrido o fato gerador tributário, ali deverá ser recolhido o tributo".

4. Embora o processo piloto em que formado o referido precedente obrigatório dissesse respeito às operações de arrendamento mercantil, a tese nele consagrada relaciona-se com a regra geral de competência tributária para a exigência do ISS, de aplicação obrigatória, portanto, para todas atividades não excepcionadas pela lei complementar de regência (art. 12, "b" e "c", do DL n. 406/1968 e art. 3, I a XXV, da LC n. 116/2003).

5. Hipótese em que o acórdão recorrido decidiu pela competência do município onde sediado o estabelecimento prestador da recorrente, pois a sua atividade sujeita-se à regra geral (art. 3º, caput, da LC n. 116/2003) e não há prova pré-constituída de que ela possui unidade profissional ou econômica fora do município recorrido.

6. Agravo interno desprovido, com aplicação de multa.

(AgInt no REsp 1711519/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 06/08/2018)

 

Na mesma linha, em acórdão mais recente envolvendo “a prestação de serviços de aplicação, processamento e análise de resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização”, a Segunda Turma do STJ concluiu pela irrelevância do local de contratação e coleta de dados, sindicando a incidência do ISS no Município onde localizado o estabelecimento prestador.[12]

Entretanto, existem casos em que o conceito de estabelecimento é interpretado de forma distinta, conferindo-se relevância ao local da contratação dos serviços. Dentre estes, destaca-se o Recurso Especial 1.439.753,[13] em que se examinou o sujeito ativo do ISS relativamente a serviços de análises laboratoriais, em casos nos quais a coleta do material biológico ocorre em Município distinto daquele onde é realizada a efetiva análise. Nesse caso, em sentido contrário aos acórdãos examinados acima, decidiu-se pela exigibilidade do ISS no Município onde realizadas as coletas de materiais.[14] Para tanto, a 1ª Turma do STJ interpretou o conceito de estabelecimento prestador (e os critérios de unidade econômica e profissional) no sentido de dar prevalência local da contratação do serviço e não à sua execução. Não nos parece ser essa, contudo, a posição mais adequada, considerando-se que não se trata do local onde a obrigação de fazer é performada, nos termos do art. 156, III, da CF/88. Além disso, não se pode afirmar que o prestador do serviço teria uma unidade econômica ou profissional, nos termos do art. 4º da LC 116/03, no lugar onde houve mera contratação ou coleta de material, quando a sua atividade-fim, o núcleo da prestação de serviço, desenvolve-se em outro local.

Por fim, deve ser igualmente afastada qualquer possibilidade de interpretação no sentido de que poderia ser considerado configurado estabelecimento digital, para fins do ISS, no local onde o cliente utiliza determinada plataforma digital, por exemplo. Trata-se de interpretação flagrantemente contrária ao que dispõe o art. 4º da LC 116/03, que trata da unidade econômica ou profissional do prestador do serviço. No caso de serviços prestados por meio de uma plataforma digital, o núcleo do facere que corresponde ao fato gerador do ISS estará onde realizadas as funções essenciais para a prestação da atividade-fim. Tratando-se de uma plataforma que viabilize intermediação, por exemplo, o estabelecimento prestador estará onde exercidas as funções essenciais para a aproximação de pessoas, e não necessariamente no local em que o usuário acessar a plataforma.

Veja-se que, curiosamente, interpretação similar a ora combatida já foi proposta no âmbito do chamado Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), a respeito do conceito de “estabelecimento permanente”. Trata-se de instituto presente na Convecção-Modelo da OCDE, sendo caracterizado como um “lugar fixo de negócios”. A exemplo do que ocorre com o conceito de estabelecimento prestador, ora analisado, o conceito de estabelecimento permanente possui grande relevância, pois fixa a divisão dos direitos de tributação dos lucros de uma empresa entre dois países. Também neste caso, há propostas para a adoção, pela via meramente interpretativa, da noção do estabelecimento digital.[15] Contudo, sequer a OCDE decidiu seguir por esta linha, que demandaria alteração legislativa extensa, a exemplo do que ocorre com o conceito de estabelecimento prestador para fins do ISS.

Desse modo, pode-se concluir que, independentemente da existência de novos modelos de negócios na economia digital, que viabilizem a prestação de serviços à distância, o conceito jurídico de estabelecimento prestador, para fins do ISS, segue inalterado. Trata-se do Município onde se localize a unidade econômica e profissional do contribuinte, assim entendida a concentração das atividades que corresponda ao núcleo do facere tributado pelo ISS.

 

 

 

2. Controvérsias envolvendo a simulação do estabelecimento prestador: aspectos relevantes

 

Examinado o conceito de estabelecimento prestador, para fins da determinação do critério espacial (e consequentemente do sujeito ativo) do ISS, cumpre examinar os requisitos legais para que possa ser reconhecida a simulação do estabelecimento prestador, desconsiderando-se os recolhimentos de ISS realizados a uma municipalidade, com a consequente cobrança por parte de outro ente municipal.

Trata-se de uma questão há muito presente nas discussões sobre o ISS, especialmente considerando-se a existência de alíquotas (e, por vezes, bases de cálculo) diferenciadas entre os Municípios, em decorrência do exercício de suas próprias competências, conforme a autonomia municipal. Não obstante, conforme destacado, essa questão tem ganhado maior relevância em face de modelos de negócios que permitem a prestação de serviços (parcial ou integralmente) remota, no contexto da economia digital. Em muitos casos, modelos dessa natureza têm levado autoridades municipais a questionar o porquê de o ISS relativo a serviços prestados a destinatários residentes no Município ser recolhido a outra municipalidade (onde localizado o estabelecimento prestador, com a organização dos fatores necessários e suficientes ao núcleo do fato gerador), não raramente com acusação de que haveria simulação do estabelecimento prestador em outra municipalidade.

Nesse contexto, o Código Tributário Nacional trata da simulação em dois dispositivos, distinguindo a simulação absoluta da simulação relativa (ou dissimulação). Veja-se:

 

Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

(...)

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. 

 

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

(...)

VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;

 

Para a aplicação desses dispositivos, é mister definir-se os conceitos de simulação e dissimulação, o que deve ser feito a partir do Direito Privado, a teor do art. 109 do CTN, conforme o qual “os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”. Nesse sentido, dispõe o art. 167 do Código Civil:

 

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

 

Conforme o dispositivo, a simulação necessariamente pressupõe uma (i) falsidade (ii) cometida de maneira dolosa, com vontade diretamente voltada ao resultado de (iii) prejudicar terceiro (o fisco) por meio da (iv.a) da interposição de pessoas, (iv.b) ocultação da verdade ou (iv.c) aposição de data falsa.

Em esclarecedora lição, Silvio Rodrigues ensina que “negócio simulado, portanto, é aquele que oferece uma aparência diversa do efetivo querer das partes. Estas fingem um negócio que na realidade não desejam”[16].

Conforme exposto, a simulação subdivide-se em duas espécies, quais sejam a simulação absoluta e a simulação relativa (ou dissimulação), que são diferenciadas pelo Código Tributário Nacional. A simulação absoluta resta configurada quando se tem a prática de um comportamento ilusório, de aparência enganosa, com o objetivo de iludir terceiros. Efetivamente, trata-se de uma realidade artificial, sem suporte, inventada. O ato ou negócio jurídico simplesmente não ocorreu; ele foi meramente fictício.[17]

Já a simulação relativa ou dissimulação se caracteriza pela existência de dois negócios jurídicos, sendo um o negócio simulado (aparente) e um outro o negócio que se pretende esconder (dissimulado). Há um ato aparente, que é o simulado, ostensivo, praticado para esconder outro negócio jurídico, oculto, que se pretende dissimular. Enquanto a simulação absoluta é retratada pela metáfora do “fantasma”, a dissimulação é representada pela metáfora da “máscara”. Há, na dissimulação, “dois fatos vertidos em linguagem: o simulado, construído por aqueles que intentaram o ato ou o negócio jurídico; e o fato que se pretendeu ocultar, a ser construído por aquele que deseja comprovar a simulação”.[18]

Rigorosamente, portanto, a acusação de simulação de estabelecimento prestador para fins do ISS consubstancia imputação de conduta dissimulatória do fato gerador, pois o contribuinte é acusado de fingir a existência do estabelecimento no Município A, enquanto esconde a existência real do estabelecimento no Município B. Portanto, nos moldes do CTN, a dissimulação do estabelecimento prestador deverá ser demonstrada pelas autoridades fiscais conforme o procedimento previsto em lei municipal editada na forma do parágrafo único do art. 116 do Código. Inexistindo lei disciplinadora deste dispositivo do CTN, ele padecerá de ineficácia técnica, sendo impossível a sua aplicação.

Nesse passo, a prova da dissimulação do fato gerador envolverá, necessariamente, a demonstração, pelas autoridades fiscais municipais, de que os fatores organizados para o exercício das atividades que consubstanciam o núcleo do fato gerador do ISS estão localizados em seu território, tendo havido mero fingimento da existência destes elementos em outro Município.

Esse ônus da prova se justifica por dois motivos. De um lado, todos os atos da Administração tributária devem ser motivados, conforme os princípios da legalidade e tipicidade fechada (art. 150, I da CF/88) e do Estado de Direito. A necessidade de motivação abrange não somente os enunciados de direito dos lançamentos tributários, mas, especialmente, as afirmações de fato, que devem ser calcadas em provas produzidas em conformidade com as regras aplicáveis.

De outro lado, um standard probatório especialmente elevado se justifica no presente caso, haja vista a gravidade das acusações de simulação de estabelecimento prestador, que implicam cobranças retrospectivas de tributos, com relevante repercussão nos direitos de propriedade e liberdade do contribuinte, como também implicam, indiretamente, o direito à repetição do ISS efetivamente recolhido a outro Município. Por isso, somente prova além de qualquer dúvida razoável pode justificar acusações de disimulação do estabelecimento prestador.

Nesse contexto, cumpre destacar que um dos elementos para a demonstração da simulação corresponde ao dolo, a intenção conscientemente dirigida para causar dano ao Município onde o estabelecimento prestador está realmente localizado. Naturalmente, a prova da intenção é bastante desafiadora, especialmente em se tratando de pessoas jurídicas, motivo pelo qual as autoridades fiscais poderão se socorrer, naturalmente, de indícios. Dentre estes indícios, exercerá papel fundamental a existência de uma vantagem econômica para o contribuinte na suposta conduta dissimulatória que lhe é impingida. Inexistindo vantagem (alíquota menor no outro Município, por exemplo), estará afastado o dolo, pois ninguém adota conduta falsa com vontade conscientemente dirigida para causar dano a um Município sem que exista uma perspectiva de vantagem para si. Em outras palavras, não pode haver simulação que não objetiva nenhuma vantagem econômica, hipótese em que o dolo resta afastado.

Nos casos em que inexiste vantagem econômica para o contribuinte em se localizar em um ou em outro Município, não se verifica nem evasão e nem sequer elisão fiscal. A evasão fiscal consiste na “conduta do contribuinte de, por meios ilícitos, assim qualificados na legislação tributária, (i) evitar a ocorrência do fato jurídico tributário; (ii) reduzir o montante devido a título de tributo; ou (iii) postergar a sua incidência”,[19] enquanto a elisão tributária consiste no “”direito subjetivo assegurado ao contribuinte de, por meios lícitos, (i) evitar a ocorrência do fato jurídico tributário; (ii) reduzir o montante devido a título de tributo; ou (iii) postergar a sua incidência”.[20]

 

3. Considerações finais

 

Em face do exposto, percebe-se que o advento de novos modelos de negócio na economia digital não tem o condão de modificar, por si só, os conceitos jurídicos, que seguem sendo aplicáveis a esta nova realidade. No caso do ISS, o estabelecimento prestador deve ser reconhecido no Município onde se localize a unidade econômica e profissional do contribuinte, assim entendida a concentração das atividades que corresponda ao núcleo do facere tributado pelo tributo.

Neste contexto, quando o contribuinte é acusado de fingir a existência do estabelecimento no Município A, enquanto esconde a existência real do estabelecimento no Município B, verifica-se verdadeira acusação de dissimulação do fato gerador. Nesta hipótese, conforme o parágrafo único do art. 116 do CTN, a dissimulação do estabelecimento prestador deverá ser demonstrada pelas autoridades fiscais conforme o procedimento previsto em lei municipal. Inexistindo tal legislação, o dispositivo será inaplicável, por ineficácia técnica.

A prova da dissimulação do fato gerador envolverá, necessariamente, a demonstração, pelas autoridades fiscais municipais, de que os fatores organizados para o exercício das atividades que consubstanciam o núcleo do fato gerador do ISS estão localizados em seu território, tendo havido mero fingimento da existência destes elementos em outro Município.

Inexistindo vantagem (alíquota menor no outro Município, por exemplo), estará afastado o dolo, e consequentemente a dissimulação, pois ninguém adota conduta falsa com vontade conscientemente dirigida para causar dano a um Município sem que exista uma perspectiva de vantagem para si. Não pode haver simulação que não objetiva nenhuma vantagem econômica, hipótese em que o dolo resta afastado.

 

Referências

 

ARZUA, Heron. “Noção de Estabelecimento”, Suplemento Tributário da LTr nº 15, São Paulo, 1976.

ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires. ISS na Constituição. Pressupostos Positivos – Arquétipo do ISS. In Revista de Direito Tributário nº 37.

BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na lei. 4ª edição (atualizado conforme a Lei Complementar nº 157/2016, por Paulo Ayres Barreto). São Paulo: Noeses, 2018.

BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. São Paulo: Noeses, 2016.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

FARIA, Luiz Alberto Gurgel de. A Extrafiscalidade e a Conservação do Princípio da Redução das Desigualdades Regionais. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

HONGLER, Peter; PISTONE, Pasquale. Blueprints for a New PE Nexus to Tax Business Income in the Era of the Digital Economy. WU International Taxation Research Paper Series No. 2015 – 15.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 33ª edição. Voluma 01. São Paulo: Saraiva, 2003.

 

[1] FARIA, Luiz Alberto Gurgel de. A Extrafiscalidade e a Conservação do Princípio da Redução das Desigualdades Regionais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 131.

[2] Cf. ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires. ISS na Constituição. Pressupostos Positivos – Arquétipo do ISS. In Revista de Direito Tributário nº 37. p. 31.

[3] Conforme Paulo de Barros Carvalho, o critério especial consiste no elemento indicador da condição de espaço, no antecedente das normas tributárias, enquanto o critério pessoal aponta os sujeitos ativo e passivo da relação. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 170

[4] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 4. Ed. Atualizada por Paulo Ayres Barreto. São Paulo: Noeses, 2018. p. 537.

[5] Ibidem. p. 537.

[6] Ibidem. p. 542 e ss.

[7]  ARZUA, Heron. “Noção de Estabelecimento”, Suplemento Tributário da LTr nº 15, São Paulo, 1976, p. 12.

[8] BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na lei. 4ª edição (atualizado conforme a Lei Complementar nº 157/2016, por Paulo Ayres Barreto). São Paulo: Noeses, 2018, p. 531/532.

[9] Primeira Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 05/03/2013.

[10] O Tribunal firmou a seguinte tese: “O sujeito ativo da relação tributária, na vigência do DL 406/68, é o Município da sede do estabelecimento prestador (art. 12); a partir da LC 116/03, é aquele onde o serviço é efetivamente prestado, onde a relação é perfectibilizada, assim entendido o local onde se comprove haver unidade econômica ou profissional da instituição financeira com poderes decisórios suficientes à concessão e aprovação do financiamento - núcleo da operação de leasing financeiro e fato gerador do tributo”.

[11] Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:

(...)

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

(...)

[12] PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC/2015. ALEGAÇÕES GENÉRICAS. SÚMULA 284/STF. ISS. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO DO ESTABELECIMENTO PRESTADOR.

1. A parte sustenta que o art. 1.022 do CPC/2015 foi violado, mas deixa de apontar, de forma clara, o vício em que teria incorrido o acórdão impugnado. Assevera apenas ter oposto Embargos de Declaração no Tribunal a quo, sem indicar as matérias sobre as quais deveria pronunciar-se a instância ordinária, nem demonstrar a relevância delas para o julgamento do feito (Súmula 284/STF).

2. Para fins de definição do lugar do fato gerador do ISS e do município competente para exigi-lo, a Primeira Seção, em Recurso Especial repetitivo (art. 543-C do CPC), entendeu que o local da prestação do serviço é o do estabelecimento prestador (art. 12 do DL 408/1968 e 3º da LC 116/2003).

3. Cuida-se, na origem, de Ação Ordinária ajuizada pela Fundação Cesgranrio contra o Distrito Federal, visando a declaração de inexistência de relação jurídico-tributária entre as partes, mais especificamente quanto ao ISS oriundo da execução do contrato 19/2016, firmado com o Inep, compreendendo a prestação de serviços de aplicação, processamento e análise de resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização.

4. In casu, conforme consta do acórdão recorrido, o serviço foi prestado pela Fundação Cesgranrio em seu estabelecimento localizado no município do Rio de Janeiro/RJ. Não importa se, para a entrega do serviço, tenha sido necessário colher dados em todo o território nacional, já que é próprio do serviço de pesquisa e estatística a coleta de dados em espaço territorial de grande abrangência.

5. Também não deve ser levado em conta, para definição do fato gerador do ISS, o domicílio do tomador/beneficiário dos serviços. Assim, irrelevante o fato de o INEP ter sede no Distrito Federal.

6. Agravo Interno não provido.

(AgInt no REsp 1810835/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/05/2020, DJe 02/06/2020)

[13] 1ª Turma, Relator Min. Benedito Gonçalves, DJ 12/12/2014.

[14] TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS. COLETA DE MATERIAL. UNIDADES DIVERSAS. LOCAL DO ESTABELECIMENTO PRESTADOR. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

1. Discussão a respeito da definição do sujeito ativo do ISS quando a coleta do material biológico dá-se em unidade do laboratório estabelecida em município distinto daquele onde ocorre a efetiva análise clínica.

2. "A municipalidade competente para realizar a cobrança do ISS é a do local do estabelecimento prestador dos serviços. Considera-se como tal a localidade em que há uma unidade econômica ou profissional, isto é, onde a atividade é desenvolvida, independentemente de ser formalmente considerada com sede ou filial da pessoa jurídica" (REsp 1.160.253/MG, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Segunda Turma, DJe de 19/8/10).

3. Na clássica lição de Geraldo Ataliba, "cada fato imponível é um todo uno (unitário) e incindível e determina o nascimento de uma obrigação tributária" (Hipótese de Incidência Tributária. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 73).

4. O ISS recai sobre a prestação de serviços de qualquer natureza realizada de forma onerosa a terceiros. Se o contribuinte colhe material do cliente em unidade situada em determinado município e realiza a análise clínica em outro, o ISS é devido ao primeiro município, em que estabelecida a relação jurídico-tributária, e incide sobre a totalidade do preço do serviço pago, não havendo falar em fracionamento, à míngua da impossibilidade técnica de se dividir ou decompor o fato imponível.

5. A remessa do material biológico entre unidades do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do tributo, à míngua de relação jurídico-tributária com terceiros ou onerosidade. A hipótese se assemelha, no que lhe for cabível, ao enunciado da Súmula 166/STJ, verbis: "Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de uma para outro estabelecimento do mesmo contribuinte".

6. Recurso especial conhecido e não provido.

(REsp 1439753/PE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Rel. p/ Acórdão Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/11/2014, DJe 12/12/2014)

[15] HONGLER, Peter; PISTONE, Pasquale. Blueprints for a New PE Nexus to Tax Business Income in the Era of the Digital Economy. WU International Taxation Research Paper Series No. 2015 – 15.

[16] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 33ª edição. Voluma 01. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 294.

[17] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2016, p. 143/144.

[18] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. São Paulo: Noeses, 2016, p. 144.

[19] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2016, p. 228.

[20] Ibidem. p. 227.

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​Janeiro 2023 - Junho 2024

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